O jornal O Liberal publicou a matéria Patrimônio abandonado destrói a memória na edição de 12 janeiro de 2020, caderno 1. A professora Cybelle Miranda, coordenadora do LAMEMO, foi entrevistada para a edição de aniversário de Belém, sendo transcritos a seguir os comentários integrais fornecidos para a matéria.
01. O patrimônio histórico e arquitetônico de Belém é um dos mais belos de todo o Brasil. São casarões, palacetes, praças, teatros, museus, mercados, monumentos… No entanto, infelizmente, muitos sofrem com o abandono e a deterioração. Em sua visão, como podemos mudar esse cenário nos próximos anos (2020 a 2030)?
A arquitetura é referência importantíssima para a memória dos habitantes de uma cidade. Nela todos nos reconhecemos como cidadãos. Contudo, há uma tendência das sociedades em buscar renovação, o que é saudável, construir arquiteturas adaptadas ao momento presente, de modo que a arquitetura antiga, elaborada por pessoas com hábitos e necessidades diferentes, muitas vezes requer um esforço a mais para se manter viva. A equação não é simples, mas deve começar pelo entendimento de cada contexto particular: tendo em vista o Centro Histórico de Belém, nele temos realidades muito distintas: a da Cidade Velha, onde ainda predominam as moradias, e a Campina, como área de intercâmbio comercial da cidade. Uma estratégia fundamental, e que se pode ver nas cidades europeias, é a integração entre os poderes públicos (federal, estadual e municipal) que, ao elaborarem planos e ações, o façam em colaboração com as instituições de ensino e pesquisa como as universidades. Nelas se produz muito conhecimento sobre o patrimônio arquitetônico que precisa ser considerado pelas instâncias de governo.
02. E esse abandono se deu por falta de políticas públicas, de interesse, de descaso da população… Como observas?
As políticas públicas precisam ser mais flexíveis e dinâmicas, criando mecanismos criativos que tragam vitalidade a locais que demandam investimentos, mas com sustentabilidade. No caso da Cidade Velha, o seu maior patrimônio são os moradores! Então, como é possível desrespeitá-los com o uso de trios elétricos, atraindo um volume de pessoas que suas ruas não comportam? No bairro da Campina, por outro lado, não cabe mais a visão saudosista do ‘belo centro’, onde meus avós iam passear no final da tarde. Hoje o público que o frequenta é oriundo de diversos bairros da cidade e principalmente dos interiores ribeirinhos. Portanto, para essas pessoas, qual o valor que essa arquitetura histórica possui, se não faz parte de suas vidas? Neste aspecto, a educação patrimonial é uma ação vital.
03. E nos próximos anos, pelo que observas, a tendência é revitalizar e recuperar esse nosso patrimônio ou, a situação tende a seguir no mesmo cenário?
Eu tenho uma visão otimista, não pode ser de outro modo, mas é preciso mostrar ao belemense que sua identidade não se faz apenas da culinária ou da música, mas de todos esses lugares da arquitetura onde estas outras manifestações acontecem, como nos mercados, nas esquinas, mas também nos teatros, cinemas, palacetes e também nos hospitais. É preciso conhecer para conservar.
04. E quais medidas e ações poderiam ser adotadas para que o nosso patrimônio fosse revitalizado, preservado e tratado corretamente?
Cabe aos governos dotar os centros históricos de infraestrutura da qualidade (pavimentação, arborização, coleta de lixo, gestão do trafego, segurança, saúde pública) para que ele seja atrativo e confortável para seus moradores e usuários. Ademais, é preciso compreender sua dinâmica e intervir nos pontos de conflito, situações em que certos usos comprometem a qualidade estética e ambiental do lugar. Cito como exemplo a ocupação de boa parte das edificações do entorno da Praça fronteira à igreja de S. João como anexos do Ministério Público e Tribunal de Justiça, que trazem por consequência o estacionamento desordenado de veículos em ruas e calçadas, impedindo inclusive o acesso às moradias. Portanto, o patrimônio não se valoriza apenas com revitalizações milionárias de monumentos, mas com a gestão permanente e participativa de todos os seus espaços.
05. E além da parte estética, em sua opinião, quais medidas podemos adotar para que esse patrimônio recupere sua importância histórica, tantas vezes esquecida pela população.
Há dois caminhos, um deles vem sendo feito por iniciativas de projetos de extensão da UFPA como o Roteiro Geo-turístico, ou a Circular Campina, mas é preciso que haja investimento do Estado sim, pois muitas vezes o abandono a que se entregam edifícios públicos contribui para a perda de qualidade do lugar, e leve a população a ter ideias como: se não é tratado, porque não demolir? Um dia, num táxi, ao passar pela Praça do Relógio, o motorista comentou: porque não transformam isso num grande estacionamento? Está sempre cheio de lixo….
06. Hoje temos imóveis que são de cunho privado e os públicos. Podes explicar um pouco pra gente como funciona essa diferença na hora de cuidar ou revitalizar esses patrimônios?
É preciso que haja ações conjuntas entre o poder público e a iniciativa privada, ambos têm deveres de cuidar de bens tombados, pois estes são, em essência, bens coletivos. O uso do espaço da cidade é coletivo, mesmo que haja propriedade privada, esta não deve ser considerada como absoluta, pois, se um proprietário abandona um imóvel, este está causando danos a toda uma coletividade. Durante uma estadia de estudos no CES da Universidade de Coimbra, pude constatar como o centro histórico foi revitalizado numa parceria entre a prefeitura e os donos dos imóveis, de modo que houve uma transferência parcial da propriedade (de frações dos imóveis) para o poder público correspondente ao investimento com o qual o proprietário não pode arcar financeiramente.
07. E dentre todos os nossos patrimônios, quais você destaca que precisam ser preservados e conservados mais urgentemente?
São muitos, infelizmente. E isso se deve a um problema crônico no Brasil, que é a falta de manutenção preventiva. Há mais interesse em fazer obras grandiosas depois que o imóvel está em pedaços do que garantir que este se mantenha permanentemente em boas condições. Casos evidentes são o Mercado de S. Braz, os Palacetes Pinho e Bolonha.
08. Bom, deixo esse espaço livre caso queiras acrescentar mais alguma informação sobre o tema “Patrimônio Histórico e Arquitetônico” nessa edição de Aniversário de Belém. Desde já, agradeço sua participação.
Belém é uma cidade riquíssima em sua diversidade, há muitas referências para a identidade local que ultrapassam o centro histórico: nossa arquitetura vernacular, a arquitetura moderna (das residências particulares e dos prédios públicos, muitos em ruínas na Avenida Presidente Vargas), as vilas residenciais do bairro de Nazaré, a arquitetura religiosa, os parques e jardins; por toda a cidade, em diversos recantos há patrimônios a serem reconhecidos e valorizados. A ampliação do conceito de patrimônio conduz a agregar novas formas de arquitetura não erudita como patrimônio, como a arquitetura do Raio que o parta, manifestação muito característica da modernização paraense, e que está em processo de ressignificação permanente. Em suma, é preciso conhecer e divulgar a riqueza arquitetônica da cidade de Belém para que esta não se perca no discurso imobiliário do “Cuidado, depois o patrimônio vem e tomba a sua casa”!